Dia de Reunião com os familiares dos residentes. Boa parte das famílias presentes. Muitos pais e esposas que já estão com algum tempo participando. Outras estão ali pela 1ª vez. Outras já passaram aquela experiência por muitas outras vezes e não somente ali conosco.
O clima é de ansiedade, nervosismo, preocupação e, do nada, o clima fica descontraido, pois uma esposa já leva aquela situação na esportiva e diz: "Ainda bem que eu não tenho filhos pequenos, porque eu tô vendo a hora ele ficar aqui internado e eu ser internada num hospício, pois eu tô pra ficar doida de andar nua pela rua".
No momento das partilhas, muitas lágrimas. Os gestos com a cabeça de que "eu te entendo", "eu sei", faziam parte de todas elas, e muito bem sincronizado, diga-se de passagem.
Alguém trazia a experiência de sua 1ª codependência. Já outro compartilhava a experiência de ser filho de adicto e agora pai de adicto em recuperação. Havia também uma experiência de convivência conjugal com um ex-marido dependente químico e o atual também, Outra compartilhava: "Sou filha de uma alcoólatra; tenho três irmãos que bebem e usam drogas e abusam muito; meu ex-marido, eu separei porque eu não aguentei apanhar todo dia; agora tô aqui lutando com esse meu filho."
Os olhares se cruzam e a cada nova partilha, os sentimentos se confundem ainda mais. Há aquelas partilhas que motiva, traz esperanças, dá forças para que possamos continuar firme. Há aquelas partilhas que nos deixa pensativos: "Será que vale a pena?"
A Psicóloga ali sentada, com uma caneta e seu caderno na mão, anotava e também falava algo. Enquanto que em outras mãos, a demonstração da inquietude, do nervosismo e da esperança. Umas mãos suadas que não paravam de estralar os dedos. Outras que não saiam das bocas, roendo as unhas. Enquanto que outras seguraram um terço...uma oração e, certamente uma promessa.
Alguns pessoas ali presentes tinham conhecimento das insanidades do seu familiar, mas já outros nem imaginavam o que o seu adicto podia ter feito em sua ativa. Uns nunca passaram por situações de crises financeiras, enquanto que outras já não tinham mais nem onde morar. Uns nunca tiveram seus familiares envolvidos com delitos e/ou crimes, enquanto que outros já tinha passado por aquela situação de visitas, mas em Instituições Correcionais. Algumas daquelas familias eram de classe média-alta, já outras eram moradores da periferia. Havia ali a esposa de um dos mais conceituados Médicos da Cidade, visitanto o seu filho. Mas havia também, sentada ali, uma senhora de 68 anos de idade, que não é nem aposentada ainda, que é quebradeira de côco Babaçú, que estava ali visitando o seu neto, que já estava ali pela 2ª vez.
Uma jovem que visitava seu irmão levanta-se dizendo que vai ao banheiro. Passam-se algum minutos...as partilhas continuavam. Um membro da nossa equipe técnica solicita que eu vá atrás da jovem, pois ela não retornou à sala. Abro a porta e logo a vejo de longe, sentada, chorando. Me aproximo. Digo para ela ficar tranquila, que tudo vai dar certo. Ela me diz: "Os meus pais não querem nem saber dele. Sou eu quem ainda tô tentando ajudar. Mas tá difícil!" - Muitas lágrimas.
Naquela hora, lembrei-me do que meus pais disse-me por muitas vezes: "Eu não tô mais nem aí pra você!".
E de fato, em minha última detenção, nunca recebi uma visita deles. Pra não dizer que não foi lá, meu Pai foi levar um colchão pra mim, no 4º dia que eu havia chegado ao Presídio...nunca mais voltou.
Quem sempre estava lá, era a Mãe de um filho meu, a qual foi brutalmente assassinada há dois anos atrás.
A cada partilha daquelas que escutei, eu via a minha Mãe e o meu Pai ali sentado. Via também a minha Avó. Via, ainda, aquela pessoa que conviveu comigo durante todo esse tempo e que ainda hoje me suporta. Minha familia foi muitas vezes me visitar em Instituições de Tratamento.
Lembrei-me do que minha Mãe costumava se questionar: "-O que foi que eu fiz, pra merecer tudo isso?"
Ela teve a infelicidade de casar-se com um alcoólatra e teve também os seus quatro filhos dependentes químico. Ela, que um dia estudou, formou-se, conseguiu juntamente com o meu Pai, um certo patrimônio, mas acabou trabalhando lavando banheiro de uma Empresa que a contratou após os 60 anos de idade. Não que lavar banheiro desqualifique ou menospreze alguém, mas eu quiz apenas mostrar a que ponto ela chegou. Teve que abandonar suas casas e seus filhos, pois não aguentava tanta vergonha, tanto sofrimento. Onde sabíamos onde ela estava, íamos atrás, tentar conseguir dinheiro. Cansei de entrar no serviço dela, fazendo vergonha.
Quando eu saí de lá, meus irmãos continuaram, até que ela abandonou tudo e partiu sem deixar endereço. Fui reencontrar minha Mãe após 11 anos que eu não a via. Vários foram os motivos que fizeram eu passar esses anos todos longe dela.
Se eu contar aqui como ficou o apartamento que nós morávamos...só ficou mesmo as paredes...tudo foi vendido...janelas, portas, pias, vasos sanitários, caixa d'agua...absolutamente, tudo. A casa, então foi pior que o apartamento, pois venderam até as telhas e madeiras. (lágrimas).
Não condeno minha Mãe por ela ter saído de casa e ter deixado seus filhos. Algumas pessoas dizem que ela não amava os filhos, mas só ela sabe o que ela passou conosco. Só ela sabe a tristeza que era viver ali conosco. Só ela sabe o que é acordar com a polícia invadindo a casa. Só ela sabe o que é passar noites e mais noites acordada pensando onde estaria os seus filhos. Só ela sabe o que é escutar tiros na rua e saber que poderia ser seu filho que estaria atirando em alguém ou levando aquele tiro. Só ela sabe o que é ser pressionada por marginais, querendo pegar seu filho. Ela fez certo em sair de casa, pois não poderia pagar o preço de nossas insanidades. Já bastava o sofrimento de ser Mãe de dependentes químico e ser impotente a isso.
Aquelas partilhas da Reunião com as famílias são parte de minha história. Eu preciso estar ali, escutando-as, mas também dando uma palavra de conforto. E eu acho que meu testemunho fala por sí só. Uma prova de que há uma esperança. Uma esperança para aquelas familias que estão ali pensando que não há mais solução, diante de tantas tentativas sem êxito.
Vou continuar voltando. Quero continuar ajudando a amenizar a dor daqueles familiares. Quero que eles saibam que "UM ADICTO, QUALQUER ADICTO, PODE PARAR DE USAR, PERDER O DESEJO DE USAR E ENCONTRAR UM NOVO MODO DE VIDA..."
Mas também vou continuar voltando para olhar meus queridos residentes. Tanto no núcleo masculino, quanto no feminino. Ali é que eu me identifico mais ainda. Ali é que me sinto entre os meus. É ali onde eu vejo que não posso e não devo voltar a usar, sob hipótese alguma. Não quero mais ter que fazer minha família sofrer pela minhas insanidades da ativa. Não quero mais ter que me distanciar deles para me tratar ou para cumprir pena. Não mesmo.
Não quero correr o risco de levar mais cicatrizes no meu corpo, ou mesmo perder a vida. Também não quero mais atentar contra a vida de ninguém. Não mesmo. Ainda hoje carrego comigo as mazelas de minhas insanidades. Ainda hoje carrego comigo aquele prontuário 20391, Pavilhão "F", cela 16, raio Leste, do Presídio Professor Aníbal Bruno. De lá, restam traumas. Lembranças sanguinárias. Fatos horrorizantes que ainda hoje me assustam em meus sonos. Da minha ativa, eu ainda carrego o pseudônimo de "Gabriel", um "elemento" descrito pelo Promotor da 3ª Vara Criminal como "frio e antisocial", mas que hoje posso dizer que trago um calor humano aos que covivem comigo no seio social.
Sei que não sou um santinho...ainda tô muito longe de ser.
Sei que ainda tenho muita coisa a pagar aqui nesse mundão. Mas quero estar "de cara" para ver tudo, pra encarar tudo. Hoje, só por hoje, eu sei que não preciso me drogar pra viver a vida. Posso viver e deixar os outros viverem, literalmente falando.
Só por hoje, vou continuar voltando.
Só por hoje, funciona.
Abração e TAMUJUNTU.